Nada no rock’n’roll é mais poético do que The Doors. Muito pelas letras de Jim Morrison, seu vocalista e principal compositor. No seu terceiro álbum, Waiting For The Sun, lançado em 3 de julho de 1968, podemos reverenciar essa poesia. Poesia musicada por Ray Manzarek, nos teclados, Robby Krieger, na guitarra e John Densmore, na bateria. Com produção de Paul A. Rothchild, vendeu mais de 2 milhões de cópias.
Hello, I Love You é um hit instantâneo, com forte apelo pop e refrão grudento. A canção, originalmente escrita por Morrison em 1965, mostra uma faceta mais comercial da banda. A letra é simples, quase ingênua, um homem abordando uma mulher na rua, mas com um ar obsessivo que dá uma camada sombria. É famosa pela polêmica semelhança com “All Day And All Of The Night”, do The Kinks, o que gerou acusações de plágio. Musicalmente, os riffs de teclado de Ray Manzarek dominam, com influência de pop psicodélico britânico.
Love Street é uma delicada balada com atmosfera de sonho. Morrison escreveu a música como um poema dedicado a sua namorada Pamela Courson e à casa dos dois em Laurel Canyon, Los Angeles, área frequentada por artistas e poetas. A letra é introspectiva e suave: “She lives on Love Street, Lingers long on Love Street”. O arranjo é acústico e quase barroco, com Manzarek ao piano elétrico. Uma pausa lírica no meio da psicodelia.
Not To Touch The Earth é um trecho extraído de um poema muito maior de Morrison chamado “Celebration of the Lizard”, que mais tarde seria lançado na íntegra em Absolutely Live. A canção é sombria e intensa, cheia de imagens oníricas e surrealistas: “Dead president’s corpse in the driver’s car”. Os vocais de Morrison são quase xamânicos. Instrumentalmente, a faixa tem um groove irregular e tenso, com mudanças de andamento e riffs inquietantes. É uma viagem alucinada e quase ritualística.
Summer’s Almost Gone é melancólica e nostálgica. A canção reflete sobre a passagem do tempo, juventude e perda: “Where will we be, When the summer’s gone?” É uma meditação sobre a morte disfarçada de balada de fim de verão. Os teclados suaves de Manzarek e o vocal contido de Morrison dão um tom sensacional. Um dos momentos mais líricos do álbum.
Wintertime Love é curta e distinta. A canção parece saída de um musical ou de uma valsa barroca, com um ritmo 3/4. A letra é romântica, quase antiquada, com Morrison num registro mais doce. É uma faixa curiosa, destoando do restante do álbum por seu lirismo leve.
The Unknown Soldier é uma das mais ousadas e politizadas faixas da banda. Morrison faz aqui uma crítica direta à Guerra do Vietnã e à forma como a violência era banalizada pela mídia. É quase uma peça teatral, com seções que simulam execução por fuzilamento e uma marcha triunfal falsa. O som de tiros, gritos e uma virada de andamento transformam a faixa em uma denúncia sonora poderosa. A conclusão é irônica: “It’s all over / The war is over”.
Spanish Caravan tem introdução clássica no violão espanhol. A faixa é um híbrido de flamenco e rock psicodélico. Robby Krieger brilha aqui com sua técnica na guitarra. A letra é enigmática, fazendo referência a alucinógenos e viagens espirituais. A canção evolui para um clima mais sombrio e distorcido, revelando um lado inquietante.
My Wild Love é a mais tribal do álbum. Morrison canta em estilo quase de canto tradicional, acompanhado por palmas e percussão mínima. É uma canção construída em forma de mantra, repetitiva, com ecos de lenda folclórica. A ausência de instrumentos melódicos reforça o aspecto místico. A letra fala de uma mulher selvagem que vaga pelo deserto e recusa se curvar a qualquer autoridade.
We Could Be So Good Together volta ao rock direto. A faixa tem um clima mais animado e dançante, com riffs simples e letra sobre romance frustrado. Embora não seja das mais ambiciosas liricamente, funciona como uma pausa leve entre as densidades das demais faixas. Morrison canta com entrega, e a cozinha, Densmore e Krieger, segura bem o groove.
Yes, The River Knows é delicada e introspectiva. Esta balada ao piano tem tons jazzísticos. Morrison canta de forma suave, quase sussurrando. A metáfora do rio sugere fluxo, tempo, aceitação e morte. Pode ser lida como uma prévia do tipo de lirismo que Morrison exploraria em seus poemas. Krieger compôs a música, mostrando sua faceta mais sensível como autor.
Um encerramento brutal: Five To One. Esta canção é uma das mais pesadas e ameaçadoras da banda. Morrison soa como um profeta do apocalipse, denunciando a hipocrisia da sociedade e a alienação: “They got the guns but we got the numbers.” É um grito de guerra da juventude. O instrumental é quase proto-punk, com um riff repetitivo e seco. Morrison improvisa vocais com fúria e sarcasmo, como num ritual rebelde. Esta faixa foi usada por Kurt Cobain em ensaios do Nirvana e influenciou gerações.
Waiting For The Sun é um retrato fiel de uma banda que ousava desafiar o formato da canção pop e fundir poesia, teatro, psicodelia e crítica social, tudo isso em menos de 40 minutos. Mas de purp rock’n’roll. O bom e velho rock’n’roll.
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