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ELIZABETH TITTON CABECA hojesc

O tempo

Na arte, assim como em tantas outras atividades humanas, discute-se o senso de oportunidade. Aquele momento em que tudo parece se organizar para que um projeto se realize. O papai dizia que a oportunidade é um cavalo encilhado que passa e se você estiver preparado conseguirá montá-lo. Nessa situação estão conjugados a busca, o desejo e a prontidão “a hora certa”. Na mitologia grega, Cronos, o deus do tempo cronológico, era pai de Kairós, o deus do tempo oportuno. O jovem deus era muito rápido pois tinha asas nos pés e, assim como as oportunidades, passava voando e dificilmente se deixava agarrar, pois era careca e tinha apenas um pequeno topete na testa, então, pegá-lo pelos cabelos, era quase impossível.

 

"Tempo de decisão" - Francescoi de Rossi (1510-1563) - afresco,  1544 - Palazzo Vecchio - Florença.
“Tempo de decisão” – Francescoi de Rossi (1510-1563) – afresco, 1544 – Palazzo Vecchio – Florença

 

Muitas vezes nós o chamamos de sorte, aquele dado momento mágico, que é relativo, e diz respeito à diferente percepção de cada um.

Na arte, “o tempo certo” muitas vezes rege o sucesso do artista. Dizemos que uma obra de arte espetacular não foi reconhecida em sua época, porque estava muito adiante do seu tempo e não conseguiu ser “lida” pelo público ou pela crítica do momento. Muito são esses casos e o mais celebrado, nos nossos dias atuais, tem sido Van Gogh (1853-1890). O artista morreu desiludido, sem ter vendido uma única obra e, no entanto, hoje elas são comercializadas por milhões, além de serem celebradas nos museus de todo o mundo, que muitas vezes usam, para a sua divulgação, os recursos mais ousados de alta tecnologia, recursos do nosso tempo!

 

"Moby Dick" - gravura .
“Moby Dick” – gravura

 

Além do tempo oportuno, o tempo cronológico é uma preocupação constante do artista: falar do seu tempo, ser contemporâneo. Existem aqueles que são “engajados”, que buscam representar, ou chamar atenção, através de sua arte, para uma determinada causa, ou um momento histórico. Entre eles, Herman Melville que, em Moby Dick (1851) ao falar da caça às baleias em busca do óleo necessário para a iluminação das cidades, descreve, com paixão, a luta de ambas espécies pela sobrevivência: as baleias lutando pela vida e os pescadores pelo seu minguado pagamento atrelado à quantidade de óleo trazida ao porto. Já outros artistas preferem tratar de questões eternas como a beleza, o real ou irreal, o sonho. Outros ainda, utilizando ferramentas contemporâneas, falam do passado ou do futuro, mais preocupados com a arte em si.

Na classificação artística denominada Surrealismo, o pintor espanhol Salvador Dalí (1904-1989), em sua obra “ A Persistência da Memória” (1931) nos apresenta o grande símbolo da passagem do tempo que é o relógio. Em sua forma distorcida, os relógios de Dalí podem nos sugerir o tempo relativo, diferente da rigidez da sequência do tempo apresentada pelos relógios de verdade que, com seu tic-tac infernal, nos alertam, segundo a segundo, que o tempo escorre por entre os nossos dedos, nos trazendo a memória da nossa finitude.

O desenvolvimento do relógio foi consequência da constante busca do homem pela compreensão do tempo. Talvez na busca de controlá-lo? Impossível! Mas, ao menos, conseguir acompanhá-lo ou classificá-lo. Os de sol usavam a sombra projetada pelo astro para registrar a passagem das horas, já a técnica dos egípcios, chamada clepsidra, datada de 1400 a.C, que pode ser vista no Museu do Egípcio do Cairo, usava a água para tal cálculo. Assim, também a ampulheta de vidro, com areia, conseguia marcar determinado período de tempo. O relógio de pêndulo, de Christian Huygens, em 1656, com sua precisão, foi uma grande conquista. Até o nosso Santos Dumont teve um lugarzinho nessa história, pedindo que o relógio fosse amarrado ao seu pulso para poder usá-lo enquanto voava.

 

"Saturno" - Francisco de Goya (1819- 1823) -afresco transladado para tela, 146x83cm - Museu do Prado - Madrid
“Saturno” – Francisco de Goya (1819- 1823) –
afresco transladado para tela, 146x83cm – Museu do Prado – Madrid

 

De todos os que buscaram desenvolver formas de acompanhar e registrar a passagem do tempo, alguns ficaram mais conhecidos do que outros, como em todas as descobertas. Mas, desde os povos antigos, como os sumérios e babilônios, que tiveram a ideia de dividir o dia e a noite em períodos iguais de 12 horas, assim como o grego Hiparco, que propôs que as 24 partes entre dia e noite tivessem a mesma duração, independentemente das estações do ano, prevalece a presença de Kairós o deus grego da oportunidade. Da mesma forma, sempre que perguntados sobre qual o pintor que em sua obra fala do tempo, a maioria se lembrará mais de Salvador Dalí e seus relógios derretidos do que de Saturno devorando um filho, um afresco que decorava os muros da casa do também espanhol Francisco Goya (1746-1828). A obra denominada “Saturno” (da mitologia Romana) pertence ao Museu do Prado, em Madri, desde 1879, como parte daquelas denominadas “Pinturas Negras”, devido ao uso de pigmentos escuros e temas sombrios. Essa obra poderia ser chamada de uma obra “engajada”, como denominei no início dessa coluna, pois gritava os horrores do período do final de sua vida, ainda atingido pela Inquisição Espanhola.

O tempo e as oportunidades vão passando por nossas vidas e cabe a cada um fazer o melhor, ou o pior, uso deles, de acordo com as próprias buscas e o entendimento que o conhecimento de cada época e de cada vida vivida proporciona, ou o que os deuses Cronos e Kairós possam permitir.

(Ilustração de abertura: “A Pesrsistência da Memória” – Salvador Dalí, 1931 – óleo sobre tela 24x33cm – Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.)

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