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ERNANI BUCHMANN CABECA hojesc

Nego Bom e Nego Mau

No pouco tempo em que fui escoteiro, entre nove e dez anos de idade, aprendi algumas coisas que me serviram para o tempo vindouro. Não falo sobre as aulas de nós, nas quais aprendi alguns, responsáveis tempos depois pela minha expulsão da companhia. Ocorreu que um chefe escoteiro mandou-me ensinar alguns nós básicos a um novato. O sujeito não se interessou em aprender, nem eu em ensiná-lo. Fui desligado por insubordinação. Como vingança, esqueci os nós, embora ainda seja capaz de dominar a arte de dar laços em cadarços de sapatos.

Aprendi sobre disciplina e hierarquia e descobri minha permanente alergia a incenso, que me fez vomitar a alma em uma solenidade de sagração da matriz de Corupá. A alma deve ter sido sepultada por lá mesmo. A disciplina e a hierarquia faleceram alguns anos depois.

Mas conheci muita gente interessante. Entre eles, dois irmãos gêmeos, conhecidos como Nego Bom e Nego Mau – apelidos hoje passíveis de crime de racismo. Um era o inverso do outro. Vinham do Itaum, um dos tradicionais bairros populares joinvilenses, sempre com um sorriso de muitos dentes no rosto.

Nego Bom era o sonho de toda mãe. Obediente, educado, incapaz de levantar a voz, só se alterava ao ser obrigado a defender o irmão da fúria materna. Nego Mau era o sonho de todo pai. Destemido, não aceitava desaforo e protegia o irmão de quem ameaçava surrá-lo na escola. Eram bons escoteiros, divertidos, um a contar histórias do outro.

Foram os primeiros amigos pretos que tive. Filhos de uma classe média baixa que vinha tentando ascender naquela cidade industrial, os irmãos não pareciam sentir discriminação. As grandes corporações instaladas na cidade – Tupy, Cônsul, Lepper, Wetzel, Douat, Döhler, Stein, Hansen, Buschle & Lepper, Lumière, Arp – utilizavam a farta mão-de-obra local, oferecendo em troca os benefícios sociais que garantiam o bem-estar dos trabalhadores.

A integração do povo de ascendência africana à sociedade joinvilense não se dava na totalidade, com clubes sociais restritos aos seus respectivos segmentos. Harmonia Lyra, Tênis Clube e Clube Joinville representavam a parte dominante. Floresta, Fluminense, Operário, as classes trabalhadoras. Nos clubes de futebol, tudo se misturava.

Era esse o retrato dos anos 1950 em Joinville, cidade pujante graças à indústria que lhe rendeu apelidos como Manchester Catarinense – a palavra inglesa pronunciada como paroxítona – e Cidade das Bicicletas, o meio de transporte do operariado.

Também tenho dois irmãos gêmeos entre si, com a diferença de que ambos nunca foram, como também não foi seu irmão mais velho, os filhos sonhados pela D. Lucília, ainda que possam ter sido orgulho do velho Arino, marido dela e pai de todos.

Nego Bom e Nego Mau foram exemplos da diversidade de personalidades, mesmo entre gêmeos. Nem sei se estão mais entre nós, embora lembre que um era Luiz Carlos, o outro João Carlos. Mas nunca soube quem era quem. Sei que hoje é dia 13 de maio.

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