Pular para o conteúdo
maria do rocio vaz cabeca

Não mexa com a irmã mais nova

irmã

Quando éramos crianças, não pensávamos na felicidade. Apenas vivíamos e éramos felizes.

É preciso, vez ou outra, olhar para a infância, molhar o pé no riacho de águas rasas e tocar na saudade do tempo onde havia sol no coração. Foi assim que encontrei, numa fresta do passado, uma história cheia de fôlego.

Vivinha. Chamavam-na de Vivinha, como se o diminutivo fosse uma forma de protegê-la do mundo. Pequenina, magricela, parecia não dar conta das brincadeiras da vida. Sua miudeza vinha acompanhada de um sorriso fixo no rosto e olhos sempre atentos. Os cabelos loiros e lisos, fáceis de pentear, eram sua maior atração.

A boneca, que cabia na palma da mão, dormia numa cama azul, do tamanho dela, na mesa de cabeceira das Mariazinhas — duas irmãs tímidas que colecionavam “filhas”, ursos de pelúcia, jogos e livros num quarto cor-de-rosa. Lá havia tempo para todos os faz-de-conta e fantasias que se ensaiassem na imaginação das crianças.

Tudo ainda estava começando. Subir em árvores, colher camélias, comer amora no pé, correr descalça, fazer comidinha com flor, era o contentamento mais que suficiente.

A escola veio cedo, como tinha que ser.

No inverno rigoroso de Curitiba, o Opala azul metálico do pai amanhecia coberto de gelo. Mesmo assim, lá iam elas, lancheiras a tiracolo, toucas Joana D’arc na cabeça, aventais de jeans com viés vermelho e nome bordado no peito. Guerreiras, já nos anos 70. Uma estreava no Jardim de Infância, a outra, no Pré-Escolar.

Mas o início não foi fácil. A irmã mais velha não queria ficar sozinha. Chorava, e fazia um escândalo comportado. Só entrava na sala de aula se a mais nova fosse com ela. Então, por alguns dias, as professoras permitiram que frequentassem a mesma turma, até que a coragem aparecesse.

Na hora do recreio, pão caseiro com doce de abóbora e leite com Nescau. Se sobrasse tempo, passeavam no jardim da Igreja do Redentor, onde os vitrais coloridos pareciam prometer os desejos mais secretos. Quando crescessem e encontrassem um amor, casariam lá.

Era “dia do brinquedo” no colégio e a pequena Vivinha, de vestido azul e branco, foi a escolhida para acompanhar as meninas. Meninos levavam carrinhos antigos e se largavam em corridas, muitas vezes, provocando acidentes. Bartolomeu, um piá grande e gritalhão, veio como o gigante Golias, espada em punho e cara de mau. Aproximou-se das duas e arrancou, com força, a boneca da irmã mais nova.

A primeira filha, pela lei dos pais, deveria dar o bom exemplo. Sua missão era ser boazinha e isso incluía não bater em ninguém. Mas ali, diante da afronta, assumiu o papel de justiceira. Reagiu enraivecida. Sentou uns socos no meliante mirim. Recuperou a boneca e a dignidade delas.

Ele que não se metesse com uma garotinha de cinco anos, que defenderia quem ama com toda a alma e valentia que nem sabia possuir.

“Dei uns ‘botetofes’ nele!”, confessou Maria, sem medo, em casa, referindo-se aos bofetões. E, para sua surpresa, em vez de castigo, ganhou uma estrelinha.

A mãe, orgulhosa, contaria por toda a vida a primeira história de enfrentamento feminino na família. Enfim, a coragem veio para ficar. O amor de irmãs simplesmente permanece: certo, inabalável, eterno.

Leia outras colunas da Maria do Rocio Vaz aqui