Araré apareceu em um congresso de criação publicitária realizado em um antigo mosteiro, adaptado para hotel em meio às montanhas, a uma hora de Belo Horizonte. Ele não tinha nada a ver com publicidade, mas seu sobrinho era diretor de arte em uma agência mineira – então Araré convidou-se para levar o rapaz e ficou por lá.
Era advogado que mal havia advogado. Vivia dos ganhos de uma terra herdada do pai, arrendadas por míseros, pero, oportunos cobres. Tinha nome pomposo, João Araré Filgueira Mendes, e um modo de falar mais pomposo ainda,
Na noite da chegada eu estava no bar daquela hospedaria tomando a dose auto prescrita de cerveja com uma cachacinha mineira, quando ele perguntou:
– Apraz-lhe provar um tira-gosto típico da região de onde provenho?
A especiaria era ciriguela, frutinha consumida com sal e azeite – um deleite, tanto que rimava.
Araré era de Grão-Mogol, no nordeste mineiro. Vivia por Belo Horizonte, onde dizia conhecer todos os bares. O sobrinho, na verdade afilhado, era filho de um primo. Seria seu herdeiro, que Araré não tinha esposa nem filhos.
Perguntei se tinha vindo de van, como os demais: “Vim conduzindo meu próprio veículo automotor à explosão”, maneira de se referir a um simples Fiat 147.
Naquela noite, Sérgio Mercer, meu parceiro na delegação paranaense, foi dormir cedo, não estava se sentindo bem. Na manhã seguinte, ao ver Mercer descer ao refeitório segurando uma xícara, Araré berrou:
– Solene, fornido, Buck Mulligan desce a escada com uma vasilha na mão.
Nada menos que uma adaptação da frase inicial de Ulysses de James Joyce. Araré era um figuraço.
Mercer e ele ficaram amigos de infância a partir do entardecer, quando aflorava o gênio que habitava o interior do genial Barão de Tibagi. Isolado naquela monástica e imensa pousada, Mercer inventou um hino para o congresso. Liderando uma procissão de criativos meio bêbados, nosso conterrâneo tirou o cinto da calça para dar chibatadas nas próprias costas e saiu pelos corredores a cantar o mote, célebre citação de Cícero no Senado Romano:
“Quousque tandem, Catilina, abutere
Patientia nostra, patitentia nostra…”
Araré ficou fascinado. Achou aquilo muito melhor que “o produto fecal discutido neste simpósio” e, minutos mais tarde, os dois entraram no veículo automotor citado e foram para os bares de BH.
Mercer voltou de táxi quase ao amanhecer. Araré ficou por lá mesmo. Anos mais tarde, voltei a falar com ele pelo telefone:
– Como vai o grande Buck Mulligan? perguntou.
Respondi que não fazia mais as pantomimas de antes, estava sóbrio. Araré também andava abstêmio, sentindo falta do sobrinho, cujo talento o levou para os Estados Unidos:
– Fui transformado em um ser triste e solitário, posto meu sobrinho ter sido exportado para Chicago.
Araré e Sérgio Mercer já não habitam o mundo presente. Devem estar circulando pelos bares de Cucuias de Baixo, encantando o povo local com suas artes subversivas, sem esquecer de falar mal de Catilina e de todos os que inundam esta terra com seus produtos fecais.