A Operação Contragolpe aberta pela Polícia Federal nesta terça (19), não só levou à prisão de militares que planejaram a morte do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de seu vice Geraldo Alckmin e do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, mas também revelou uma extensa rede do alto escalão das Forças Armadas, com oficiais graduados que trocavam informações sobre o golpe e/ou eram cotados para “pacificar” o País após a ruptura formada. Os investigadores encontraram mensagens, reuniões, documentos e áudios com citações, em diferentes graus, a pelo menos 35 militares – entre eles dez generais e 16 coronéis do Exército, além de um almirante – durante a mais recente fase sobre a trama antidemocrática supostamente gestada no governo Jair Bolsonaro.
O Estadão pediu via Comunicação do Exército e da Marinha manifestação dos militares citados no inquérito da PF, mas não obteve resposta. O espaço está aberto. Em nota divulgada no dia da operação, o Exército afirmou que a Força “não se manifesta sobre processos em curso, conduzidos por outros órgãos, procedimento que tem pautado a relação de respeito do Exército Brasileiro com as demais instituições da República”. As defesas dos presos na operação de terça-feira, 19, ainda não se manifestaram. O espaço está aberto.
O alvo principal da ofensiva foi um general: Mário Fernandes, ex-secretário-executivo do governo Bolsonaro. A partir de seu celular, a Polícia Federal encontrou conversas em que ele e colegas de farda reclamavam sobre o Alto Comando do Exército, dizendo que ele “tinha que acabar” e pregando: “Quatro linhas da Constituição é o cacete”. Os diálogos são efusivos e mostram a insatisfação de alguns militares com o fato de a cúpula do Exército não ter embarcado no suposto plano para manter o governo Jair Bolsonaro após a derrota nas urnas.
“Kid Preto, cinco não querem, três querem muito e os outros, zona de conforto. É isso. Infelizmente. E a lição que a gente deu para a esquerda é que o alto comando ele tem que acabar. Se cria um general de cinco estrelas ou se promove, se mexe na promoção dos generais e só se promove nos próximos oito anos só um general quatro estrelas. Como é nos outros exércitos. Aí acaba essa palhaçada de unanimidade, acaba essa porra. Foi essa aula que a gente deu para eles, infelizmente”, escreveu um colega de Mário.
Com Fernandes a PF encontrou documentos cruciais para a investigação: o plano ‘punhal verde amarelo’, que previa o envenenamento de Lula e o assassinato de Moraes a bomba; e uma minuta de gabinete de crise que “pacificaria” o País após a ruptura, sob a chefia de aliados de primeira hora de Bolsonaro: os generais Augusto Heleno e Walter Braga Netto.
Com o major Rafael de Oliveira, outro alvo da operação de terça-feira, foram encontrados um arquivo e mensagens relativas à operação ‘Copa 2022′, que tratava da prisão e execução de Moraes. Essa operação chegou a ser efetivamente iniciada, mas acabou abortada de última hora. Com o tenente-coronel Hélio Ferreira Lima, a PF encontrou a planilha do golpe, com mais 200 linhas descrevendo o passo a passo para a ruptura democrática.
Os nomes dos militares envolvidos direta ou indiretamente na trama golpista são dispostos ao longo da representação da PF dentro de três vertentes principais: os que dialogavam abertamente sobre o golpe, inclusive reclamando da demora do mesmo; os elencados como integrantes do hipotético Gabinete Institucional de Gestão da Crise que seria criado após a ruptura; e os integrantes do Núcleo de Oficiais de Alta Patente com Influência.
‘Vai ser guerra civil’
As mensagens que Mário Fernandes trocou com os colegas de farda ganharam amplo destaque na representação da Operação Contragolpe em razão dos detalhes dos diálogos.
Uma das conversas foi com o coronel Roberto Criscuoli, que, após o segundo turno, escreveu: “Mario, eu tava até conversando agora com o pessoal aqui, cara. Se nós não tomarmos a rédea agora, depois eu acho que vai ser pior. Na realidade vai ser guerra civil agora ou guerra civil depois. Só que a guerra civil agora tem uma justificativa, o povo tá na rua, nós temos aquele apoio maciço. Daqui a pouco nós vamos entrar numa guerra civil, porque daqui a alguns meses esse cara vai destruir o Exército, vai destruir tudo”. Ao Estadão, o coronel negou que tenha participado de planos para assassinar autoridades.
“Então eu acho que essa decisão tem que ser tomada urgente, cara. E o presidente não pode pagar pra ver também, cara. Ele vai destruir o nosso País, cara. Democrata é o cacete. Não tem que ser mais democrata mais agora. Ah, não vou sair das quatro linhas. Acabou o jogo, pô. Não tem mais quatro linhas. O povo na rua tá pedindo, pelo amor de Deus. Vai dar uma guerra civil? Vai dar. Eu tenho certeza que vai dar. Porque os vermelhos vão vir feroz. Mas nós estamos esperando o quê? Dando tempo pra eles se organizarem melhor? Pra guerra ser pior? Irmão, vamos agora. Fala com o 01 aí, cara”, seguiu.
Outro interlocutor frequente do general – apontado pelo tenente-coronel Mauro Cid (ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e delator) como um dos mais radicais do govenro – é Reginaldo Vieira de Abreu. Foi com ele que Mário reclamou sobre o Alto Comando do Exército. E então Vieira de Abreu disse: ”O senhor me desculpe a expressão, mas quatro linhas é o caralho. Quatro linhas da Constituição é o cacete. Nós estamos em guerra, eles estão vencendo, está quase acabando e eles não deram um tiro por incompetência nossa. Incompetência nossa, é isso”.
Reginaldo Vieira de Abreu também pediu uma reunião de Bolsonaro “só com a rataria” e sem a presença de pessoas “acima da linha ética”. Ele não foi encontrado para se manifestar.
‘Nossa ação pode ser até dia 31′
Os diálogos mostram ainda o acesso que Mário tinha a pessoas próximas de Bolsonaro, como o Capitão Sergio Rocha Cordeiro, que era assessor da Presidência da República, e o coronel Marcelo Câmara, também aliado de primeira hora do ex-chefe do Executivo, figuras que foram alvos de operações anteriores da PF. Em uma das mensagens, Mário enviou supostas provas que poderiam influenciar em decisões estratégicas, afirmou ter falado com o ministro da Justiça Anderson Torres e “expôs a preocupação de muita gente ‘jogar a toalha’, ou seja, desistir de seguir adiante com os intentos golpistas”. A PF diz que, aparentemente, a mensagem ficou sem resposta.
Já com Câmara, que era chamado de Caveira por Mário, o general tratou do levantamento de informações para atacar as eleições e a urna eletrônica. “”Força, Caveira! Ouça esses dois áudios aí. Ah, porra, será que isso já chegou para vocês? Ah, para o presidente? Porra, aquela proposta dele só falar no dia 16 que é… tem amparo legal. Ouça esses dois áudios aí.”, declarou, no início de dezembro.
Cid também era um interlocutor de Mário. No dia em que foi realizada a reunião, com Bolsonaro e os chefes das Forças Armadas, para a apresentação da minuta do golpe que circulava entre bolsonaristas, o militar enviou o seguinte áudio ao hoje delator: “Força, Cid. Cid, acho que você está tendo uma reunião importante aí agora no Alvorada. Pô, mostra esse vídeo pro comandante, cara. Se possível, transmite durante a reunião, porra. Isso é história. E a história é marcada por momentos como esse que nós estamos vivendo agora. Força.”
Em outro áudio, o general relatou a Cid ter conversado pessoalmente com Bolsonaro: “Durante a conversa que eu tive com o presidente, ele citou que o dia 12, pela diplomação do vagabundo, não seria uma restrição, que isso pode, que qualquer ação nossa pode acontecer até 31 de dezembro e tudo. Mas, porra, aí na hora eu disse, pô presidente, mas o quanto antes, a gente já perdeu tantas oportunidades”. Cid respondeu que conversaria com o então presidente.
Bolsonaro tem sempre negado qualquer intenção golpista. Sobre a operação desta semana, o ex-presidente não se manifestou até o momento após ser procurado por meio de sua assessoria.
Gabinete Institucional de Gestão da Crise
Vasculhando o celular de Mário Fernandes, a PF encontrou uma minuta de criação de um “Gabinete Institucional de Gestão da Crise” que teoricamente seria ativado em 16 de dezembro de 2022, um dia depois da ação contra o ministro Alexandre de Moraes – que acabou abortada. Segundo o documento, o grupo teria a função de “estabelecer diretrizes estratégicas, de segurança e administrativas para o enfrentamento da crise institucional” – no caso, um golpe de Estado.
A criação do grupo seria baseada em um decreto presidencial e a missão do gabinete seria acompanhar as ações estabelecidas no mesmo “para analisar os assuntos com potencial de risco, com o objetivo de prevenir e mitigar riscos e articular gerenciamento da crise”. O grupo proporcionaria a Bolsonaro “maior consciência situacional das ações em curso para apoiar o processo de tomada de decisão”.
A estrutura organizacional prevista para o gabinete chamou atenção dos investigadores – continha vários nomes de aliados de primeira hora de Bolsonaro, como o general Heleno como chefe do gabinete e o general Braga Netto como coordenador geral do grupo. Mário Fernandes seria da assessoria estratégica, junto com um coronel.
O gabinete contaria ainda com uma assessoria de Comunicação Social – formada por dois coronéis da Polícia Militar do DF, dois coronéis do Exército e dois tenentes-coronéis – entre eles uma mulher. Havia ainda a previsão de uma Assessoria de Operações Psicológicas (sem militares designados), uma Assessoria Jurídica e uma Assessoria de Inteligência, que seria integrada por três coronéis.
Também haveria assessorias: parlamentar, com três coronéis; de relações institucionais, com o ex-assessor de Bolsonaro Filipe Martins; de administração; de TI, com um general; e de Segurança de Instalações, com outro general.
A Polícia Federal suspeita que o documento tenha sido impresso também no Palácio do Planalto, assim como ocorreu com o ‘Plano Punhal Verde Amarelo’. Os investigadores verificaram que um documento de mesmo nome foi impresso no Planalto, em seis cópias, com 30 páginas. A PF suspeita que as impressões seriam entregues em alguma reunião e aponta que Mário Fernandes visitou Bolsonaro no Alvorada no dia seguinte.
A Polícia Federal identificou uma intensa troca de mensagens entre os militares sob suspeita, inclusive entre aqueles que participaram da ação batizada ‘Copa 2022′ – lançada em 15 de dezembro de 2022 para prender e executar o ministro Alexandre de Moraes, mas que acabou abortada. Os diálogos foram identificados a partir do celular do major Rafael de Oliveira, que foi preso na terça-feira, 19, apontado como um dos principais responsáveis pela ‘Copa 2022′.
Em um dos diálogos, que ocorreu em setembro de 2023, Oliveira comentou com um coronel sobre o fato de um ‘kid preto’ ser alvo da Operação Lesa Pátria, suspeito de ser um idealizador dos atos golpistas de 8 de janeiro. Eles afirmaram que “o mal não recua” e questionaram que haveria “algum contraponto do bem”. “Estamos no alvo”, escreveu Oliveira – o que, segundo a PF, revela a preocupação do major em relação às investigações que avançavam.
Além disso, Rafael compartilhou com outros dois coronéis e o capitão Lucas Garellus a entrevista em que o ministro Alexandre de Moraes, no início do ano, revelou a descoberta do plano de prisão e assassinato contra ele. Lucas foi alvo de buscas na Operação Contragolpe, sob suspeita de ter auxiliado em ação de monitoramento de Moraes. Sua defesa também não foi encontrada.
Algumas mensagens ainda foram registradas no grupo de WhatsApp de bolsonaristas chamado ‘Dosssss!!!. Nele, o major Rodrigo Bezerra Azevedo – que também participou da ação ‘Copa 2022′, segundo a PF – externou, nos últimos dias de 2022, a frustração pelo fato de as Forças Armadas não terem aderido ao intento golpista. No dia 30 de dezembro, quando Bolsonaro partiu para os Estados Unidos, ele escreveu: “Rapaziada esse grupo aqui pra mim perdeu a finalidade… deixo aqui um abraço pra FE de verdade que fizeram o que podiam pra honrar o próprio nome e as Forças Especiais…qq coisa estou no privado!!Força!!”
Núcleo de Oficiais de Alta Patente
Segundo a PF, Mário Fernandes – alvo principal da Operação Contragolpe – seria um dos integrantes do Núcleo de Oficiais de Alta Patente identificado no bojo das investigações sobre a tentativa de golpe supostamente gestada no governo Jair Bolsonaro. A maioria dos militares citados como membros de tal grupo foram alvo da Operação Tempus Veritatis, em fevereiro.
Os investigadores apontam que os integrantes do núcleo, “utilizando-se da alta patente militar que detinham, agiram para influenciar e incitar apoio aos demais núcleos de atuação por meio do endosso de ações e medidas a serem adotadas para consumação do Golpe de Estado”
Nesse ponto, além de Mário, a PF cita: o almirante Almir Garnier Santos, que foi comandante da Marinha entre abril de 2021 e dezembro de 2022 e teria, segundo o delator Mauro Cid, colocado suas tropas à disposição para Bolsonaro dar início a um golpe de Estado após as eleições; e o Laércio Vergilio, coronel da reserva que trocou mensagens sobre o golpe com Ailton Gonçalves Moraes Barros – capitão que foi expulso do Exército e foi preso na investigação sobre fraudes no cartão de vacinação do ex-presidente.
Também são mencionados os generais: Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa que enviou uma relatório ao Tribunal Superior Eleitoral lançando suspeitas sobre o pleito, sem provas; Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa que foi vice na chapa de Bolsonaro nas eleições de 2022 e recebeu uma reunião, em sua casa, na qual foi aprovada o plano de ação de ‘kids pretos’ contra Moraes (o qual era parte de um plano maior para o assassinato de Lula e Alckmin); e general Estevam Theóphilo, que era chefe do Comando de Operações Terrestres do Exército (Coter), teria concordado com a ideia de um golpe em uma conversa com o ex-presidente e seria o responsável por arregimentar os ‘kids pretos’ na ação contra Moraes.
Todos os citados em investigações anteriores da PF sempre negaram o cometimento de crimes.
Fotos: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Montagem: Anndersou/HojeSC
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