A Estônia, uma pequena república báltica com a população de apenas 1,3 milhão de habitantes, foi recentemente classificada pela ONU como o terceiro país digitalmente mais avançado do mundo. Isso não quer dizer apenas que cada cidadão possua um smartphone! Na Estônia a tecnologia digital está entranhada no próprio tecido da nação. Graças à X-Road, uma ‘rodovia online’ que coordena múltiplas bases de dados e registros documentais, tarefas essenciais como votar, declarar imposto de renda, gerir o histórico de dados médicos, dentre outras, podem ser feitas online. Mais do que isso, a Estônia se tornou um campo fértil de inovação e empreendedorismo, com uma vibrante cena de startups, algumas das quais com atuação mundial e avaliação de mercado de mais de 1 bilhão de dólares.
Com baixa relação dívida/PIB, orçamento balanceado e políticas de livre comércio, a Estônia se tornou um polo de estabilidade e prosperidade. Sendo membro da União Europeia, da zona do euro e da OTAN, a Estônia é amplamente integrada às organizações da Europa Ocidental. Com PIB per capita de cerca US$ 31.800 em 2022, a Estônia é considerada pelo Banco Mundial como uma economia de renda elevada. E isso num país com serviços de educação e saúde universalizados e a mais longa licença maternidade dentre todos os países da OCDE!
O presente de prosperidade nasceu de um passado de dificuldades. A Segunda Guerra Mundial encontrou a Estônia presa entre duas grandes nações expansionistas: a União Soviética-URSS e a Alemanha nazista. Após o pacto Molotov-Ribbentrop de 1939, a URSS ocupou a Estônia e impôs um regime brutal. Dezenas de milhares de pessoas, incluindo a maioria da elite política, econômica e cultural do país, foram deportadas para os gulags russos. A grande maioria jamais voltou, tendo perecido por fome, frio e esgotamento devido a trabalhos forçados. Com a derrota dos exércitos nazistas em 1945, a União Soviética retomou a Estônia e a transformou em uma república soviética por mais de 40 anos. Com o fim da URSS no período pós reformas estruturais de Gorbachev, a Estônia finalmente decretou sua independência e abraçou a transição para o capitalismo de livre mercado e a democracia liberal.
Ao longo dos últimos 30 anos, a história da Estônia é marcada por duas conquistas: sucesso econômico e transformação digital.
As raízes da revolução digital estoniana podem ser rastreadas já em 1991. Após a independência, a sociedade local teve uma rara oportunidade de construir seu modelo de integração quase a partir do zero. Aproveitando essa oportunidade, o governo estoniano decidiu apostar nas possibilidades crescentes da tecnologia e da inovação. A começar pelo aproveitamento das estruturas de pesquisa remanescentes do período soviético e sua integração ao processo de educação. Em 2001 é criada a X-Road, permitindo acessibilidade e descentralização de dados. Em 2002 é lançado um inovador sistema nacional mandatório de identidade digital. Em 2007, após um ataque cibernético, é criada uma embaixada de dados em Luxemburgo. Em 2011 o Skype, o serviço de bate-papo por vídeo lançado na Estônia, é comprado pela Microsoft por 8,5 bilhões de dólares, impulsionando ainda mais a transformação digital. Atualmente, seus unicórnios recentes incluem a empresa de pagamentos TransferWise e a concorrente do uber Taxify-Bolt. Além delas, outras empresas atuam em áreas diversificadas, desde blockchain a alimentos orgânicos. Em 2014 é lançado o programa e-residency, que permite que indivíduos iniciem negócios no país sem morar lá. Até 2022, mais de 64.000 pessoas em todo o mundo haviam se inscrito para a e-residency.
A transformação da Estônia em uma nação digital embasada em três pilares: Confidencialidade, disponibilidade e integridade.
O pilar da confidencialidade permite que toda a sociedade, empresas, organizações e indivíduos tenham sua identidade e estejam presentes no ecossistema digital, com confidencialidade preservada. O pilar de garantia de confidencialidade é fundamental ao funcionamento do ecossistema. Sem essa garantia, não há como os agentes participarem ativamente do ecossistema, limitando seu impacto potencial.
A base do pilar de disponibilidade é a X-Road. Na Estônia não há nenhum banco de dados central. Cada parte interessada, seja um departamento governamental ou empresa, pode escolher seu próprio sistema e se conectar ao ecossistema através de uma rodovia de dados, a X-Road, construída com tecnologia blockchain. Em 2021, cerca de 3000 diferentes serviços online eram executados ao longo da X-Road, atingindo quase 3 bilhões de operações.
O terceiro e último pilar é a integridade. Graças à tecnologia blockchain, trocas de dados e comunicações, dados em repouso e arquivos são independentes. Qualquer instituição pode usar a infraestrutura e ela funciona como um código aberto. A embaixada de dados em Luxemburgo garante também ao sistema um nível adicional de segurança.
Os efeitos da transformação da Estônia em uma nação digital se identificam por indicadores dos mais variados, como por exemplo:
• O tempo para abertura de uma empresa foi reduzido de 5 dias para 3 horas;
• O tempo médio despendido para elaboração da declaração de imposto de renda na Estônia é o menor do mundo! Apenas 3 minutos!
• 99% dos pacientes têm registros digitais e prontuários médicos acessíveis em todo o país. Ademais, 99% das prescrições médicas são digitais;
• 99% dos serviços públicos on-line com acesso 24 horas por dia, 7 dias por semana
• O sistema e-Police disponível em carros de polícia une mais de 15 bancos de dados, incluindo os de Schengen e Interpol;
• A Estônia ocupa a primeira posição na Europa nos testes PISA da OCDE.
A transformação da Estônia através da criação de um ecossistema de inovação pauta também o empreendedorismo do país. E esse impacto vai muito além daquele que é percebido apenas através de grandes disruptores como Skype, Transferwise e Nortal. De acordo com dados do ministério da economia da Estônia, o crescimento médio anual do setor de startups tem sido de 35% ao ano, mesma dimensão do nível de crescimento de empregos gerados! O volume de investimento estrangeiro líquido captado por startups estonianas atingiu 962 milhões de euros em 2021, contra 23 milhões em 2012! Em 10 anos o investimento em startups foi multiplicado em mais de 40 vezes!
O rápido crescimento do ambiente de startups na Estônia passa também por suporte de políticas de organização do estado. Até 2013, não havia nenhuma política de desenvolvimento com foco específico em startups. De 2014 até 2020 o foco de ação governamental passou a estar na criação de um ecossistema de startups e na construção de um mercado de investidores via venture capital. Com a ampliação do volume de investimentos o foco da ação governamental mudou uma vez mais para o período 2021-2035. A atenção agora está na integração de desenvolvimento, pesquisa e educação para áreas de tecnologia intensa.
De acordo com o IMD World Competitiveness Center, a definição de competitividade de um país está na integração de quatro fatores: i. nível de eficiência do ambiente governamental; ii. nível de eficiência do ambiente de negócios; iii. infraestrutura do país e; iv. performance econômica. Em seu relatório do ano de 20211, o IMD analisou a competitividade de 64 países. Num ranking que conta com a Suíça na primeira posição e a Venezuela na 64ª e última, a Estônia figurou como a 26ª no ranking de competitividade. E isso vindo da 35ª posição em 2019. O Brasil figurou entre os últimos, ficando na 57ª posição em 2021.
Ao se analisar duas variáveis da competitividade, a eficiência do ambiente de negócios e a eficiência governamental, é possível medir-se o equilíbrio entre o poder do governo e o poder da sociedade. O equilíbrio entre o estado e a sociedade cria um corredor estreito no qual a liberdade floresce. Como mostra a figura a seguir, a Estônia se classifica próximo à 30ª posição no ranking de eficiência de negócios e entre as 20 melhores em termos de eficiência governamental, situando-se numa posição alinhada ao equilíbrio. O Brasil, dada à dificuldade de suas empresas com a ampliação de produtividade e dada a crônica ineficiência do aparato estatal, além de baixa competitividade, sequer consegue ficar em linha com o corredor.
A performance da Estônia, por si só, é admirável. Em 33 anos de independência a Estônia foi capaz de construir, a partir das ruínas de um passado de dominação estrangeira e comunismo, uma sociedade livre, desenvolvida e com perspectiva positiva de futuro. O tour de force estoniano, contudo, fica ainda mais evidente quando o comparamos com a performance do Brasil. A população de toda a Estônia é equivalente às populações somadas de 3 cidades catarinenses, Florianópolis, Joinville e Criciúma. A 47ª cidade mais populosa do Brasil é São Gonçalo, no Rio de Janeiro, com 896 mil habitantes. A 47ª cidade mais populosa da Estônia é Kallaste, com apenas 743 habitantes. Enquanto o clima brasileiro é ameno, com oferta de sol e recursos naturais em todas as regiões, a Estônia possui clima extremamente frio e com poucas horas de luz natural na maior parte do ano. Enquanto o Brasil desfruta de paz com todos os seus vizinhos, a Estônia possui como vizinha a Rússia, país que a invadiu por diversas vezes nos últimos dois séculos e que trava uma criminosa batalha de conquista territorial com a Ucrânia.
No começo dos anos 1990, quando a Estônia se desmembrava do entulho soviético e o Brasil já fazia suas primeiras reformas privatizantes e liberalizantes, ambos os países possuíam níveis de PIB per capita equivalentes e próximos a US$. 2.500. Ao longo das últimas 3 décadas, enquanto o Brasil conseguiu trazer seu PIB per capita para US$ 9.000, a Estônia, com muito menos recursos e disponibilidades, rompeu a barreira dos US$ 30.000. É uma diferença de quase 4 vezes! Ambas são eventos notáveis. No caso da Estônia um exemplo de maximização dos recursos na geração de desenvolvimento e riqueza para sua sociedade. No caso do Brasil, o exemplo oposto.
O sucesso da Estônia grita o quanto o Brasil pode e deve fazer melhor.