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O menino desastrado

ERNANI BUCHMANN CABECA hojesc

Os cabelos emendavam com as sobrancelhas, tantos ele tinha. As olheiras eram profundas, o rosto uma massa disforme. Não era um bebê bonito, reconheceram as enfermeiras. Parecia ter vontade férrea de sobreviver, malgrado a dificuldade para respirar. O médico diagnosticou asma, depois rebaixada à bronquite. Ainda assim, andou cedo, embora jamais tenha adquirido equilíbrio. Passou a vida tropeçando, quem sabe resultado da lateralidade invertida: era canhoto, o infeliz.

Canhoto e desastrado. Na solenidade de formatura no jardim de infância, no auditório do colégio das freiras, a professora criou um espetáculo original: os alunos representariam a cozedura de uma torta. A menina mais bonita iria comandar a feitura do bolo, chamando ao palco os personagens-ingredientes. O mais gordo seria o fermento, o mais branco o açúcar, um moreninho faria o papel de açúcar mascavo – nada mais politicamente incorreto, mas isso não havia na época. Quem não tinha talento seria ovo. Uma dúzia de ovos, dos quais ele seria um. Um doze-ovos, poderia-se dizer. Todos metidos em uma fantasia de papel crepom, foram convocados a entrar no palco pela doceira.

Quase todos. Um ovo desajeitado foi surpreendido por um prego traiçoeiro que, à saída da coxia, deixou-o de cueca. Puxado de volta pela professora, deixou a dúzia de ovos desfalcada e a família apreensiva na plateia. Voltou para casa enrolado em um resto de cortina improvisado em túnica.

A mãe compensava os desacertos do filho com roupas vistosas, uniformes engomados, sapatos com verniz. Isso fazia tanto a diferença no grupo escolar que ele e outro aluno de perfil similar foram escolhidos para entregar o presente de aniversário da diretora, com direito à fotografia publicada no jornal. No dia seguinte, o pai comprou o diário, a mãe mal suportava a ansiedade. Lá estava a foto do grupo. No centro, a diretora, de um lado o tal colega.

– Cadê você, meu filho?

– Estou aqui, mãe. Este braço sou eu.

O consolo é que aquele braço era o esquerdo, o seu braço de fé, em cuja extremidade estava a mão canhota, responsável pelo jeito canhestro com que vem escrevendo crônicas pouco inspiradas ao longo da vida.