Em dezembro de 1984 fui convidado a apresentar a agência de publicidade da qual era sócio para os executivos norte-americanos de um cliente com filial na Cidade Industrial de Curitiba. A matriz era em Portland, Oregon.
Aproveitei uma viagem para Greensboro, na Carolina do Norte, onde me aguardava um dia de reuniões para discutir a campanha de lançamento do caminhão Volvo de cara-chata no Brasil, e cruzei os Estados Unidos até a costa oeste.
Cheguei de madrugada, dormi mal, mas às 8h30 da fria manhã de inverno estava a postos na sede da empresa. Apresentação feita, depois do almoço no refeitório fui ciceroneado por um mecânico brasileiro, funcionário da empresa que vivia por lá há décadas, para conhecer a fábrica. O Miguel do seu nome original já havia sido trocado por Michael quando se tornou cidadão dos Estados Unidos – Mike no dia a dia. Casado com uma norte-americana, não falava português com frequência e misturava palavras. Em vez de dizer “esta pecinha” dizia “esta partinha”, trocando a palavra peça por “part”, sua equivalente em inglês.
Miguel-Mike me deixou nos escritórios para ser recepcionado pelo sujeito que cuidava do marketing internacional. Profissional experiente, Rhys Casewell era um australiano que conhecia todos os gomos do planeta.
Levou-me até sua casa, pegamos sua mulher e fomos jantar, ouvindo o CD “Velô” do Caetano que lhe dei de presente. Ele e a mulher adoraram a faixa “Podre poderes”, mesmo sem entender a letra – que desancava a ordem constituída no Brasil.
Rhys contou que conhecia Curitiba, cidade que lhe trazia ótimas lembranças. A primeira coisa que perguntou foi se eu conhecia o Quatro Bicos, a lendária boate curitibana. Elogiou o ambiente, a beleza do público “frequentador”, digamos assim, e por aí foi.
Fiquei sem jeito, afinal a mulher dele estava na mesa, e não demorou a perguntar o que era o “quatrrou bicous” de que falávamos. Respondi na maior cara de pau:
– It´s a church!
Rhys ficou encantado com o meu cinismo. A distinta senhora quis saber o significado daquelas palavras. Expliquei que se devia à arquitetura da igreja, em quatro ângulos, ou seja, “bicous” – a representar o ecumenismo da seita, pronta para receber pessoas de todos os cantos. Deslavada mentira, já que a verdadeira construção era uma casa das mais comuns no Capão da Imbuia.
Mas a mulher queria mais informações. Qual a religião que ali se pregava, já que falávamos de muita animação no local?
Afirmei que era uma igreja sincrética. Ai quase me ferrei, porque Rhys quis saber o que aquilo queria dizer. Fiz um resumo do sincretismo religioso, surgido na Bahia, que unia religiões de diferentes matrizes, como as cristãs, as africanas e as orientais, tudo com muita música. No Four Angles os dogmas sincréticos eram ministrados por uma pastora, Maria Japonesa – Mary Japanese, of course:
– What exotic! exclamou, sem saber que a tal pastora era a dona do lupanar.
À essa altura o marido estava à beira do paroxismo. E quase desmaiou quando garanti que quem costumava frequentar aquela igreja era o também baiano Caetano Veloso, sempre que vinha se apresentar em Curitiba. Inclusive, tinha sido lá que ouvi “Podres poderes” pela primeira vez. Quanta coincidência.
– Unbelievable, ele repetia sem parar.
E foi assim que encerramos o jantar. Rhys Casewell teve o cuidado de deixar a esposa em casa, antes de me levar ao hotel. Garantiu que eu era um gênio, ator e cretino de muito talento. Ficou de me visitar em Curitiba quando de sua próxima vinda ao Brasil, o que jamais aconteceu.
Mas, naquela noite de muito frio em Portland, foi para casa às gargalhadas, ouvindo “Podres poderes” em alto volume.
Caetano Veloso que me desculpe por usar seu nome em vão, mas não me ocorreu outra saída para limpar a barra de um marido australiano sem-vergonha que gostava de viver perigosamente.