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Rita Lee, entre ser fã ou virar mito, escolhe descer do pedestal em livro póstumo

“Entreguei o livro e pedi que cuidasse do lançamento, mas com uma condição: só depois de morta. Artista morto vale mais, tem uns até que viram mito”. Nas primeiras páginas de O Mito do Mito, lançado em julho pela Globo Livros, Rita Lee manda um recado – que acabou virando um presente. Despedimo-nos dela, mas não de sua arte, que reverbera, inédita.

A obra póstuma da cantora – porque ela assim quis, já que estava escrita desde 2019 – tematiza a relação fã/ídolo, os sonhos, as ciladas as (des)ilusões que só quem ama demais a arte e um artista consegue compreender.

Ao ter o livro em mãos, o leitor pode se questionar: é continuação biográfica ou ficção fantástica? A dúvida se esclarece nas primeiras páginas: é um híbrido, que a própria autora denominou “autoficção”.

A protagonista tem o mesmo nome: Rita Lee Jones, que também é nacionalmente famosa. Assim como a ídola-Rita, tem uma estrela de sete pontas tatuada na mão. E, também como uma Rita Lee vivida, que já vislumbrava a nostalgia dos que já foram, a protagonista pedia proteção por meio da tatuagem que, de alguma forma, a conectava com os abraços da mãe.

Para além disso, alguns casos e personagens podem ter sido levemente inspirados em fatos reais. É aí, também, que reside o mistério da obra.

O mito

Paulistana – e assumidamente bairrista – Rita Lee se inspirou no centro histórico da capital para ambientar um suspense à brasileira, com doses de sensualidade vampiresca e bem longe dos castelos fakes de estúdios hollywoodianos.

Em O Mito do Mito, a protagonista decide se consultar com um psiquiatra. Porém, o médico só atende depois do pôr do sol, em um casarão próximo ao mosteiro de São Bento. Com um misto de curiosidade, medo e um pouco de atração, ela se deixa levar durante a consulta.

O que chama a atenção na obra é o fato de que, no divã hipotético criado por Rita, há liberdade total para revelar inseguranças, até aquelas que soam incabíveis. Ao psiquiatra misterioso, revela:

“Eu gostaria de dizer como o amor dos fãs me faz bem. Mas não entendo o que veem em mim”

Passagens como essa emocionam – ainda que descritas de forma bem-humorada, como também ocorre em Rita Lee: Outra Autobiografia (Globo Livros, 2023). Na obra, ela descreve o período em que conviveu com o câncer de pulmão – que recebeu o sugestivo nome de “Jair”. O jeito debochado para tratar de temas pesados é, inclusive, uma das marcas registradas da autora.

Transformando-se em personagem de si mesma, Rita Lee deixa transparecer a dificuldade em se entender rainha ou mito de qualquer coisa – uma certa autossabotagem comum às mulheres. Ao contrário de outros tidos mitos, Rita não vestiu essa carapuça.

Sucesso, aqui vou eu

Rita Lee conviveu com dualidade ídolo-fã desde quando era uma jovem apaixonada pelo ator James Dean que começava a se destacar nos Mutantes. Já ali, seu rosto roqueiro-angelical e a franja imitada por 10 entre 10 meninas se iluminava na tela da TV Record, durante o Festival da Música Popular Brasileira.

Mas foi na parceria romântico-musical com Roberto de Carvalho, o “Rob”, a partir da segunda metade dos anos 1970, que ela conheceu sua maior popularidade. Gostava das manifestações de afeto, porque as entendia também como fã. Acostumou-se com filas na porta do camarim, com pessoas que a paravam para pedir um autógrafo na rua, com fãs renovados a cada geração.

Porém, em o Mito do Mito, Rita pondera que lugar do ídolo é, também, de sofrimento – “A quantidade de sucesso pode vir a ser inversamente proporcional à sua felicidade pessoal”, escreve.

Sem rodeios

Mesmo não se tratando de uma autobiografia, Rita Lee se deixa transparecer ao longo da narrativa. Abre parêntese para falar abertamente, como sempre falou, sobre questões espinhosas. O uso e excesso de drogas é descortinando, fazendo uma reflexão sobre a espetacularização do usuário quando as substâncias saem de cena: “Depoimentos de ex-drogados recebem bastante recall da mídia”, destaca.

Também reconhece que desacatou autoridades masculinas compondo e cantando sobre sexo. Em contrapartida, sentia que afastava alguns homens: “O assédio até podia ser grande, mas não era maior do que o medo que os caras deviam sentir de mim.”

Porém, há coisas que Rita Lee não conta, deixando o leitor curioso por respostas que talvez nunca se confirmem: o segredo do amor longevo com seu Rob e, em uma passagem menos singela do livro, quem seria a “cantora arroz de festa” com quem o santo não batia – muitas suspeitas foram levantadas nas redes, indo de Sandy (por ter defendido rodeios) à Zélia Duncan (que a substituiu nos Mutantes em 2006).

Como faz um bom ídolo, Rita elegantemente “se abstém de comentar detalhes da vida pessoal.”

“Artistas são deuses do exagero”

Na dúvida entre amar e ser amada, Rita Lee mostra desenvoltura ao descer do pedestal. É no lugar de fã que se sente confortável para expor vulnerabilidades e delírios.

Alguns causos da fã-Rita citados no livro merecem destaque: como quando deu um cristal phantom para David Bowie (bonitinho) e depois escreveu de batom no espelho do banheiro: “ELE SABE QUE EU EXISTO” (delírio). Ou quando ganhou um pedaço de tecido do James Dean – autenticado, ela frisa – que costumava cheirar “como se fosse a cueca dele – uma experiência transcendental”.

Confessa não entender os modismos atuais dos fãs de realities. Para ela, que teve como primeiro ídolo o personagem Peter Pan, um ídolo tinha de, pelo menos, saber voar. Ou defender a causa animal, como faz Brigitte Bardot – e como ela mesma fez, o que não deixa de ser irônico. Porém, Rita esclarece que não é fã de si mesma, “porque tem a lua em virgem.”

Diante dos casos que ouviu, o psiquatra-misterioso crava: “Como fã, você não tem cura”. Ao que a paciente Rita responde: “Nem quero. Minha vida seria besta sem meus ídolos.”

Mais que um experimento autoficcional de Rita Lee, O Mito do Mito é uma declaração de amor. Aos ídolos que cultivou, ao público que a abraçou, à família que a formou e a que criou, à música que ouviu e que gestou. É uma carta de leitura leve e bem-humorada que ela deixa encarnada não só como mito, mas como alguém que adora outro, uma fã – a figura mais romântica desde a Grécia Antiga. Dessa maneira, presta uma homenagem a todos eles.

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(Foto: Divulgação)